o que se ouve entre a opy e a escola ? - corpos e vozes da ritualidade guarani

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capítulo três

capítulo cinco



CAPÍTULO QUATRO
ESTRATÉGIAS DE ABERTURA:
DA ESTÉTICA FISIOLÓGICA AO COMPORTAMENTO ATIVO


A conexão com a filogênese de Leroi-Gourhan fundamenta-se num redimensionamento da estética a partir dos fundamentos corporais que enviam a uma estética fisiológica, princípio que encaminha as vias de acesso ao domínio sobre o fisiológico.

“Se admitirmos que a estética se baseia na consciência  característica do homem por ser ele o único a poder formular um juízo de valor , das formas e do movimento (ou dos valores e dos ritmos), é-se levado, pelo mesmo motivo, a procurar a que fontes vai ele beber a sua percepção do movimento e das formas.” (Leroi-Gourhan, 1987:85)

Partindo em busca das fontes em que o homem bebe sua percepção, ou seja, os fundamentos corporais que sustentariam a estética, chega-se à estética fisiológica .
Esse princípio fundamenta-se nas técnicas das grandes escolas místicas orientais, entre as quais inclui-se a ritualidade ameríndia via canto-dança, o mborahei Guarani. Nessas sociedades, esses processos pautam a socialidade, em contraste com a moderna sociedade ocidental, caracterizada pela privação dessa estética fisiológica, resultante dos processos de racionalização e da dessacralização da arte.
A ritualidade reúne o conjunto de técnicas com que o homem pode empreender um tal domínio sobre o fisiológico e, a partir daí, acessar a estética fisiológica.
Em homem e animal a base biológica do equipamento sensorial é a mesma. É na interação com o ambiente, que o organismo reconfigura essa base através da auto-regulação, num processo denominado comportamento ativo.
A apropriação diferenciada do homem sobre a auto-regulação resulta da consciência, definida como rede de símbolos que possibilita a reflexão das formas e movimentos do equipamento sensorial. Essa reflexão tenderia a estabelecer um espaço e um tempo humanos que determinariam, numa teia de medidas e variantes, o comportamento.
“No decurso da evolução humana ritmos e valores reflectidos tenderão a criar um tempo e um espaço especificamente humanos, aprisionando o comportamento na teia das medidas e das variantes, concretizando-se numa estética no sentido mais estrito do termo.” (1987, p.87)

O domínio sobre o fisiológico é efetuado a partir da instrumentalização do corpo. Por meio da alteração rítmica, característica da ritualidade, acessa-se a sensibilidade visceral, atingindo o campo estético individual e conduzindo, através dessa ruptura do equilíbrio rítmico, a uma expatriação mental.
A ritualidade fornece assim, a chave que permite ao autor estabelecer o princípio de sua filogênese: que a simbolização inteligente é susceptível de se inverter, descendo do cimo até as profundezas da base, e que tudo no homem é assimilável às diligências do pensamento esteticamente construtivo.
Nos processos de ritualidade dessas escolas místicas armazenam-se as técnicas de domínio sobre o fisiológico. Sua arquitetura simbólica, imediata ao corpo, fornece material para uma reconstituição arqueológica dessas técnicas.
Considera-se, em detrimento de tais técnicas que proporcionaram os passos decisivos nas transformações do homem, o processo de racionalização que conduziu a um processo evolução do organismo social, sustenta os princípios epistemológicos que fundamentam esse bom funcionamento do dispositivo socio-técnico.

fundamentos corporais de valores e de ritmos

A filogênese de Leroi-Gourhan baseia-se no pressuposto de uma continuidade entre a base biológica animal (forma) e a simbolização inteligente humana, intermediadas pelos dispositivos sensoriais integrados em totalidades dinâmicas.
Para o autor, é este ponto de articulação o princípio de especificidade da inteligência humana, a base do processo de hominização e ponto de partida de suas teses.
A noção de estética de Leroi-Gourhan articula a consciência das formas (valores) e movimentos (ritmos), o que chama de pensamento estético, às suas fontes perceptuais, às quais atribui o poder auto-regulador na condução da motricidade . Distingüe, assim, o complexo sensoperceptivo de uma base biológica mais estável, associada por vezes ao comportamento nutritivo. Dessa forma, constitui-se um campo híbrido em que se interpenetram dimensões simbólicas e infra-simbólicas.
Remete-se às abordagens de Menezes Bastos (1978) e Seeger (1980) que enviam, respectivamente, às influências ecológicas e sociais sobre a configuração dos sentidos e seu campo semântico.
Essa interação alinha-se às implicações sociológicas do complexo de aprendizagem e mística abordado nas considerações sobre a ritualidade Guarani.
Na articulação dessa teoria filogenética com os processos da aprendizagem Guarani, destaca-se a concepção de sujeito atuante, resultado do comportamento ativo, associação de movimento e forma na reciprocidade com o meio externo.

sensibilidade visceral

“A manifestação mais importante da sensibilidade visceral relaciona-se com os ritmos.” (1987:88)

No âmbito da estética fisiológica é a base rítmica que modula as cadências fisiológicas que constituem a trama em que se inscreve toda atividade.
Essa base rítmica encaminha as rupturas programadas dessas cadências fisiológicas, concatenadas à sensibilidade visceral. A ritualidade constitui-se da apropriação de tais técnicas por uma sociedade. Suas práticas conduzem a estados psíquicos que buscam circunscrever a consciência para, a partir daí, operar sobre a estética fisiológica. As experiências perceptivas resultantes encaminhariam ao que se denomina domínio sobre o fisiológico. Tais princípios de estética fisiológica encaminhados por essa filogênese buscam alinhar essas sociedades sob uma ontologia característica.
Uma série de operações descritas no âmbito da sensibilidade visceral, articulam-se a outro plano da estética fisiológica, a sensibilidade muscular. O movimento ou ritmo, ponto de contato entre esses planos, marcam a interpenetração rítmica ou motriz entre o organismo e o meio.
Dentre os programas de ruptura das cadências fisiológicas cotidianas, típicos da aprendizagem Guarani, enfocou-se aqui aquele que articula esses planos, o canto-dança, o mborahei. Ainda assim, estas se interpenetram às vivências oníricas, meditativas ou nutritivas, bem como a outras práticas que conduzem à operação sobre a plasticidade da corporalidade através da motricidade programada.
A nutrição, ou o jejum, e o sonho, ou a vigília, atividades fundamentais no estabelecimento do equilíbrio rítmico, compõem, ao lado do quadro da sensibilidade muscular, o universo simbólico dos rituais de canto-dança observados entre os Guarani.
Esse ponto de contato é fundamental no percurso desta investigação por colocar em contato tais dimensões díspares e complementares que encaminham possíveis conclusões interpretativas sobre o conjunto de técnicas que se articulam no complexo cerimonial místico elaborado pelos che ramói Guarani para a aprendizagem de seus netos.

sensibilidade muscular

Para Leroi-Gourhan, conclui-se que o ponto chave do processo de hominização é a capacidade de reflexão do plano de coordenação dos ritmos e das formas, das solicitações de que é alvo e das interpretações e respostas que se fornece, ou seja, o deslocamento ativo de seu aparelho de transformação de sensações em símbolos.
A articulação auto-reguladora entre forma e movimento, concentra-se na interpenetração da sensibilidade visceral com a sensibilidade muscular.
O todo dinâmico que caracteriza o comportamento de situação espacio-temporal (sensibilidade muscular) são os órgãos de equilíbrio, tendo como sentidos dominantes a visão e a audição. Articulados no plano simbólico às formas e aos movimentos, aos valores e aos ritmos, arquitetam um tempo e um espaço especificamente humanos.
“Para o resto do mundo vivo, tempo e espaço não possuem qualquer outra referência inicial para além da visceral, labiríntica e muscular.” (1987:94)

Na consideração do equilíbrio em relação ao meio, à situação imediata e à organização dos movimentos, remete-se à relação paleontológica existente entre o ouvido e o aparelho ósteo-muscular.

“O peso do corpo é sentido pelos músculos, combinando-se com o equilíbrio espacial para manter o homem preso ao seu universo concreto e constituir, por antítese, um universo imaginário em que o peso e o equilíbrio são abolidos. A acrobacia, os exercícios de equilíbrio, a dança, materializam em larga medida o esforço de fuga às cadeias operatórias normais, a procura de uma criação que rompa o ciclo cotidiano das posições no espaço. A libertação produz-se espontaneamente nos sonhos de vôo, no momento em que o repouso do ouvido interno e dos músculos, durante o sono, cria o inverso do cenário cotidiano. (...) Tanto para o animal como para o homem, o equilíbrio reside na ação coordenada dos órgãos e dos músculos, de acordo com o desenrolar de cadeias rítmicas de diferentes amplitudes, imbricadas umas nas outras segundo uma ordem regular.”
(1987:91)

O comportamento ativo coordena movimento e forma. A interação com o meio em que se desloca o sujeito atuante é intermediada pelos sentidos. O ritmo exterior, como a densidade, determinam a auto-regulação.
No plano da sensibilidade muscular, o desvio das cadeias rítmicas cotidianas, coordenado ao plano intelectual e apoiado na música, encaminha manifestações de valor desmaterializante que visam a uma reorientação rítmica ou alienação muscular.
Esse processo é socialmente conduzido, segundo a hipótese do autor, por intencionalidades distintas e, até, opostas. Enquanto descreve como a privação e o controle caracterizam esses processos na moderna sociedade ocidental, elabora a partir da noção de domínio sobre o fisiológico a assimilação cultural, constatada em todas as culturas dos trinta mil anos que o homem viveu sua vida em bloco, do seu processo filogenético.
Justifica sua tese a partir dos processos de ruptura com o equilíbrio rítmico, bem como de sua análise dos elementos rituais tais como a música, a dança, o toque do instrumento, a oração ou a respiração a partir do caráter dinâmico de seus esquemas corporais.
A ritualidade, com seu complexo de esquemas corporais, constitui o eixo, no âmbito da estética humana, ou da cultura enquanto comportamento ativo, que integra, a partir do movimento, a base e o cimo de sua filogênese.

o reflexo dos movimentos

Após evidenciar a estética fisiológica, recorre à estética funcional, apoiada no estudo da técnica com a análise da fabricação e uso de utensílios, para chegar aos resíduos deixados pelo processo de domesticação do tempo-espaço.
“Desde os seus primeiros estádios, uma das características operatórias da humanidade foi a aplicação de percussões rítmicas, longamente repetidas.” (1987:117)

Assim, as atividades rítmicas acionam um espaço e um tempo configurados humanamente. Enquanto a ritmicidade do braço encerra a operação criativa formal, de caráter individual, a ritmicidade do passo ao envolver o corpo todo, ganha dimensão coletiva e possibilita uma protosocialidade.
“No homem, ao bater de pés, que constitui o quadro rítmico da marcha, junta-se a animação rítmica do braço; enquanto que o primeiro comanda a integração espacio-temporal, estando na origem da animação no domínio social, o movimento rítmico do braço abre uma outra via, a de uma integração do indivíduo num diapositivo criador, já não de espaço e de tempo, mas sim de formas.” (1987:118)

Conforme se demonstra, a percepção espacio-temporal humana estende-se continuamente. Mesmo as operações formais têm sua origem em atividades rítmicas. No âmbito dessa filogênese, as atividades rítmicas constituem-se como o princípio da rede de símbolos que pauta a estética como produção de conhecimento.
“No respeitante a ritmos regulares o mundo natural, apenas nos oferece o das estrelas, o das estações do ano e o dos dias, o da marcha e o do coração, ritmos que a diversos graus, conferem à noção de tempo um carácter prioritário relativamente à de espaço. A estes ritmos já existentes, sobrepõe-se a imagem dinâmica do ritmo criado pelo homem, moldado nos seus gestos e nas suas emissões vocais e, finalmente, o traço gráfico, fixado pela mão na pedra ou no osso.” (1987:126)

A conquista de um espaço-tempo ordenado pelo ritmo concede uma cadência a partir da qual instaura-se a socialização. Da ritmicidade caótica do mundo natural, na qual o homem está inserido, emerge um espaço-tempo social que, ainda que contínuo, permite a ele circunscrevê-la. As civilizações agro-pastoris encontram nos astros o ponto de apoio para circunscrever a Terra em movimento.
Conforme essa filogênese, o ritmo conduz o homem ao desdobramento num tempo-espaço próprio, esse em que baseia sua estética na consciência. No entanto, afirma-se uma continuidade entre essa dimensão da consciência objetiva e sua base biológica. Ao circunscrever a dimensão simbólica (consciência) a partir da inserção, via ritmo, nesse devir da estética fisiológica, opera-se uma revolução em que o corpo, como condição de possibilidade da consciência, instaura-se numa mesma dimensão.
A estética fisiológica fornece uma concepção hermenêutica apropriada para a abordagem da ritualidade. A ritmicidade dos passos, associada pelo autor à imaginação em oposição ao ritmo técnico, se expressa na música e na dança rituais, constituindo a experiência mística em sua imanência.
Articulada à reflexividade , própria à dimensão simbólica atribuída aos corpos em vivências rituais, a ritmicidade define um tempo-espaço humano a partir de um tempo-espaço outro. O tempo-espaço que me circunscrevia torna-se o contraponto a partir do qual elaboro uma ritmicidade própria. Essa protosocialidade configura-se na linguagem multidimensional dos feitos cotidianos. O corpo rítmico coletivo constituído ritualmente é o modelo dessa protosocialidade que empreende essa circunscrição do tempo-espaço não-humano, a que se pode nomear terra dos deuses.

da leveza do corpo onírico

O peso tem um papel fundamental na orientação do comportamento ativo da sensibilidade muscular. Entre os Guarani, a leveza é uma das qualidades mais apreciadas e buscadas nas práticas de canto-dança. Associa-se geralmente à alegria, disposição de afecto vigente na opy, da qual as crianças são os zeladores.
Numa passagem em que comenta a importância dos pássaros na simbologia da dança ritual Guarani, Cadogan comenta a associação entre as crianças pequenas e os oporaíva, intermediada pelo Colibrí que cuida del habla-alma de los párvulos .
Zenón Benitez informa: efectivamente, nosotros (los oporaíva) dejamos que el Colibrí nos conduzca: roñemo-ñondeguá voí nte Mainó me (1958:81).
Através da gravidade (densidade), e de sua sublimação (sutilização), que se chegou à conexão entre as práticas de canto-dança e a cultura do sonho que caracteriza a mística guarani.
Foi a noção de leveza que realizou, no horizonte de tal incursão pelo universo cerimonial guarani, a articulação ou sutura entre os domínios fisiológico e místico.
Tais domínios, desde o início, ordenavam-se pari passu. Faltava, no entanto, o elemento chave que desse a passagem de um a outro. Nhakaen Sebastão, da tekoá Itu, passou-me então essa instrução:  O guarani come pouco... pro corpo ficar levinho e poder sonhar.
A partir de então, foi possível não só compreender um pouco mais sobre a dimensão mística do tradicional jejum guarani, mas também encontrar uma das portas que conduz ao sonhar.
Essa relação entre uma leveza ou sutileza no domínio fisiológico relacionada a sutileza no domínio onírico estendeu-se às práticas de canto-dança.

dos fluxos simbólicos aos corporais

O amplo alcance das cadências fisiológicas na memória filogenética apontam para uma entrada ao nível infra-simbólico. É nessa base infra-simbólica que se desenrolam as operações da estética fisiológica. Seu ponto de articulação com os planos simbólicos são os todos dinâmicos, esquemas que se constituem em torno de matrizes perceptuais e configuram os comportamentos (nutritivo, de afetividade física e de integração espacial) que conduzem às sensibilidades (visceral, muscular). O alcance de tais intervenções depende do uso instrumental do próprio corpo em sua transformação.
“Daí resulta um verdadeiro condicionamento, que opera enquanto base estável a nível das operações quotidianas, mas que apenas intervém no comportamento estético na medida em que este tem por instrumento o corpo humano.” (1987:88)
A reprogramação operada sobre a cadência fisiológica tem o intuito de atuar sobre o jogo entre o cimo (linguagem simbólica ou verbal) e a base (estética fisiológica) por meio do canto-dança visando travar conhecimento por modulações de intensidade.